terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A humilhação de Maria

Era uma vez Maria, que se trabalhava na mesma empresa há 24 anos, sendo terceirizada para uma outra empresa bem maior, há dezesseis anos. Maria teve seu primeiro registro de Carteira de trabalho nesta empresa que a terceirizou aos 19 anos, depois de trabalhar em diversos subempregos desde os 16 anos.
 
Maria vestia a camisa da empresa com muito orgulho
Maria gostava do que fazia na empresa em que trabalhava terceirizada, se orgulhava de que seus Chefes diretos sempre a elogiaram, dizendo que ela levava a empresa mais a sério do que alguns empregados da própria empresa, “vestia a camisa mesmo”, como diziam.


Sua chefe de setor saiu de férias, uma pena, pessoa experiente, equilibrada, competente, mas enfim, todos têm direito a um descanso não é? Foi nomeado um Chefe de Setor Interino, que antes era colega de trabalho de Maria, o que a fez sentir-se feliz, porque eram muito unidos, sempre se ajudando, tirando dúvidas, atendendo pessoas quando um não podia, enfim, pensou que essa união continuaria neste período.

Ocorreu que foi necessário um remanejamento de salas e, Maria, sempre foi uma pessoa de alto astral, não gostava de tristeza, principalmente no ambiente de trabalho. Quando viu que sua nova sala teria um pedaço de vidro a ser coberto, logo pensou “vou colocar algo alegre, pois as pessoas sempre chegam para o atendimento com problemas e talvez isso amenize um pouco a situação”.
Maria gostava de alto astral ao seu redor

Qual foi a sua surpresa quando o Chefe de Setor Interino, no quinto dia do exercício de sua função, adentrou a sala de Maria, sem pedir licença, falando em tom arrogante, como se nem a conhecesse “que estavam havendo reclamações sobre o papel que estava no vidro da sala e que era para ser retirado imediatamente. Que fossem colocadas cartolinas brancas para tampar o vidro”, jogando cartolinas em cima de sua mesa.

Maria assustou-se e perguntou “quem estava reclamando”, temendo ser algum dos superiores, momento em que ele respondeu “que alguns usuários da empresa estavam rindo e ridicularizando a empresa e que aquela era uma empresa séria”. Maria ainda perguntou “Por que tudo aqui tem que ser feio, quebrado, sujo?”, ele, num tom de voz mais alto e mais arrogante respondeu: “Não interessa, você não está levando essa empresa a sério, você está ridicularizando a empresa, eu quero esse papel retirado hoje e pronto!”

Maria, mesmo não concordando com o ponto de vista dele e sentindo-se humilhada, porque tudo isso foi dito na presença de colegas de trabalho e de usuários da empresa, passou mais de uma hora emendando cartolinas. Depois pensou, todos que chegam aqui, chegam com um problema pra resolver, e nem sempre conseguem, vou escrever uma frase que gosto muito, do Filósofo  Friedrich Nietzche, “Aquilo que não me mata, só me fortalece”. As vezes é do sofrimento que tiramos força para crescer, assim pensava Maria.
Maria também gosta de Filosofia

Qual a surpresa de Maria ao chegar no trabalho na segunda-feira e encontrar sua sala violada e as cartolinas arrancadas. Resolveu então procurar o Diretor Geral da empresa e narrar todo o ocorrido. Ele lhe atendeu muito bem, foi muito educado com ela, ouviu tudo o que ela tinha para contar. No final disse que conversaria com o Chefe de Setor Interino, pois realmente ele não poderia ter feito isso, mas, que será que Maria não estava muito estressada, nervosa, precisando, talvez descansar um pouco?

Maria é pessoa instruída, sabe que foi vítima de Assédio Moral por parte do seu Chefe de Setor Interino e poderia denunciá-lo na Ouvidoria da Empresa. Mas sabe também que apesar das várias “amizades” que fez na empresa, ela não é um deles, é uma terceirizada, e, se fizer isso, será hostilizada pelos “colegas, o
corporativismo fala mais alto, e provavelmente colocada a disposição da Empresa que a terceirizou.


Sabendo de tudo isso, a Maria nada restou do que procurar a pessoa que ouve seus lamentos e vê suas lágrimas sem julgá-la, seu médico. Agora, fica pelos cantos da casa, fingindo ser invisível, esperarando o tempo passar, e, com ele, a vergonha de ter sido humilhada, sabendo que provavelmente vão dar um jeitinho que a culpa seja dela. É assim que funciona...
Quantas Marias choram por aí?

domingo, 22 de março de 2015

Anjo

Sabe aquela situação que tinha tudo pra dar errado e acaba dando um revertério? Pois é, foi assim que fiquei
amiga dela, há quinze anos.
Meu chefe entrou na minha sala e disse: “Andréa, você vai atender mais uma mãe, só que essa daí vem de Vitória e me parece que a família tem um poder aquisitivo bom, então pode ser que ela chegue aqui `tipo madame`, com o nariz em pé. Não abaixe a cabeça e eu não quero saber de tratamento diferente pra ela, entendeu?”. Eu, meio tonta, respondi um “sim senhor” automático.
Não deu muito tempo, entrou na minha sala uma senhora sorridente perguntando: “Oi, tudo bem, você que é a Andréa? Eu vim de fora e estou meio perdida aqui sabe...”. Eu me levantei e estendi a mão respondendo, “sim, sou eu mesma”. Ela me puxou pra um abraço e me deu dois beijinhos no rosto, falando: ”Ah que bom te conhecer pessoalmente, meu filho fala tanto de você nas cartas dele, muito prazer!”. Eu respondi “O prazer é meu Dona Graça...”, ela já foi me cortando “Dona?, eu não sou tão velha assim. É Graça!”. Foi empatia à primeira vista.
Depois do atendimento ela me perguntou se havia um lugar pra almoçar ali por perto, porque ela teria que voltar à tarde. Eu indiquei um restaurante e ela fez questão que eu fosse com ela, pra não ficar sozinha. Ficamos duas horas batendo papo como se nos conhecêssemos há uma vida. Ela me contava coisas da minha terrinha e eu contava a ela como eram as coisas aqui. E virou tradição os nossos encontros e almoços mensais, e, entre eles haviam telefonemas quase todos os dias.
Conheci a família dela quase toda. De vez em quando ela trazia alguém com ela: o marido, a filha com a neta... E todos já chegavam sabendo quem eu era. Ela me chamava de “filhota”.
Quando o filho dela foi embora, acabaram-se nossos encontros pessoais e passaram a ser virtuais e por telefone. A gente se falava todos os dias. Ela sabia como eu estava só de ouvir minha voz ou ler o que eu escrevia pela net, a danada tinha um sexto sentido de mãe comigo.
Ela queria saber tudo: se eu estava namorando, por que não estava, se eu ficasse doente sempre tinha uma
receitinha, comentava minhas fotos, adorava minhas bocas do face.
O filho dela, a gente falava que era “nosso menino”, um código criado por nós. Ela sempre me perguntava por ele quando ele estava aqui, e, depois que ele foi embora, era ela quem me dava notícias dele. Se ele ficava doente, quando ele foi papai, quando ele começou a trabalhar... nossa, como ela ficou feliz!
Não tinha explicação. Como duas pessoas que não se viam há quase sete anos mantinham um laço tão forte? Às vezes eu pensava em qual seria a opinião dela sobre alguma coisa, não dava outra estava lá uma mensagem dela perguntando se estava tudo bem comigo e ficávamos madrugada a dentro conversando.
Guardei isso comigo todos esses quinze anos, mesmo na época em que a gente se encontrava, fizemos um pacto por motivos éticos. Era uma ligação, pra quem acredita, que vinha de outras vidas. Pra mim era a única explicação cabível.
No dia 16 de março, eu estava trabalhando quando meu telefone bipou. Peguei para ver o que era e apareceu
escrito na minha linha do tempo pelo face dela “Graça faleceu dia 12 e foi sepultada dia 13”. Na mesma hora eu dei uma resposta malcriada e cheia de palavrões, pensando em qual desocupado teria invadido o face da minha amiga e feito uma brincadeira dessas.
Mas, a noite, o marido dela entrou in box e me contou que ela estava doente há muito tempo, me contou o nome da doença, e disse que no dia 08 ela não aguentou e ele teve que leva-la ao hospital, foi para a UTI, e, no dia 12 ela foi embora. Perguntei a um médico sobre a doença e ele me disse que para ela chegar ao ponto de ir para a UTI, ela deveria estar acamada há meses e com uso de oxigênio. Eu só não falava com ela há uma semana, como assim?
Fiquei imaginando minha amiga na cama, doente, me enviando mensagens engraçadas, picantes, me dando conselhos, mas, em momento algum me contou que estava doente. Por que? Será que sua generosidade foi tão grande a ponto de continuar agindo comigo como se estivesse tudo bem para que eu não sofresse? Será que sua preocupação com o outro ultrapassou a preocupação com seu próprio bem estar? Infelizmente essa resposta foi com ela, agora, meu Anjo.



"Me mostre um caminho agora
 um jeito de estar sem você
 o apego não quer ir embora
 diaxo, ele tem que querer."

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Era uma vez, Aracelli...


Todas as histórias que eu conto aqui são verídicas e eu sou a protagonista, mesmo que as vezes subjetivamente. A história que eu vou contar hoje é verídica também, porém, não sou a protagonista, mas poderia ter sido eu, você, seus filhos ou qualquer um.
Era uma vez, em Vitória/ES, uma menina de oito anos chamada Aracelli, uma criança como qualquer outra, que estudava, gostava de correr, brincar, mas, com um diferencial: sua beleza. Aracelli era muito bonita e seu corpo era “de menina-moça”, como disse sua professora à época dos fatos. Sua beleza acentuada chamava a atenção de todos e despertou a cobiça de dois adultos.

Esses rapazes eram conhecidos playboys da cidade, filhos de famílias abastadas, possuíam carros da moda e viviam a vida intensamente, como se não houvesse amanhã. Também eram muito bonitos e simpáticos na época, sempre acompanhados de belas mulheres na noite capixaba.
Os rapazes começaram a se aproximar de Aracelli na porta de sua escola, fazendo amizade, oferecendo presentes, até conquistar a simpatia e confiança da menina.
Um dia, 18 de maio de 1973, a mãe de Aracelli enviou um bilhete à escola pedindo que autorizasse a saída de sua filha antes do horário normal, e, a diretora, conhecendo a pessoa, acatou o pedido e deixou que a menina saísse mais cedo. Aracelli saiu e sentou-se em uma lanchonete próxima ao ponto de ônibus, para aguardar seu transporte passar.
Um dos rapazes parou seu carro em frente  a lanchonete e chamou Aracelli, dizendo a ela para “ir no carro do tio”, que ele levaria a menina em casa. A menina, que já o conhecia e confiava nele, entrou no carro, pois afinal era uma “tio legal que lhe dava presentes”. Foi a última vez que ela foi vista com vida.
Seu corpo foi encontrado, dias depois, em um matagal, com marcas de espancamento, mordidas, violência sexual, e, ácido.Testemunhas contaram que no dia 18 de maio Aracelli foi vista, ainda com vida, tomando um sorvete no restaurante de propriedade do “tio” que a buscou na escola, afinal tratava-se de um lugar badalado na época, que, inclusive, saía nas colunas sociais.
Outra testemunha informou que a menina estava sendo mantida no sótão do restaurante, e, que era “visitada” pelos dois rapazes que se aproximaram dela.
Uma outra testemunha afirmou que foi procurada pelos rapazes, que estavam com a menina no carro, e pediram sua ajuda para leva-la ao hospital, pois, segundo os mesmos, “fizeram besteira”. Ainda segundo esta testemunha, a menina já estava morta e não havia mais o que fazer.
Diante de todo o alarde, os rapazes foram indiciados pela polícia e levados a julgamento.  Houve uma comoção social muito grande na época, com pessoas na rua pedindo justiça, dentro do possível, pois ainda estávamos na ditadura militar.
O final dessa história?
Algumas testemunhas mudaram o depoimento, afirmando “não terem visto e não saberem de nada”, e, outras “apareceram mortas” como que por mágica.
Os rapazes?
Foram absolvidos por falta de provas e continuaram suas tranquilas vidas de filhos de grandes empresários e playboys da cidade.
A família de Aracelli?
Perdeu sua filha e nunca mais puderam ver seu sorriso, ouvir sua voz e vê-la crescendo.
A história é chocante?
Sim, e muito. Mas que sirva de alerta para todos nós que amamos crianças e adolescentes, mesmo que não sejam de nossa família, pois, criminosos também são bonitos e simpáticos.
No ano de 2000 o Governo Federal instituiu o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual Infantil e escolheu o dia 18 de maio para marcar a data, como uma menção ao “Caso Aracelli”, para que casos como esse não aconteçam mais.


Apesar de ter sido preciso a criação de uma data especial para a campanha, o combate ao abuso e exploração sexual deve ser todo dia, observando, denunciando, pois, como eu disse no início, poderia ter sido com qualquer um de nós.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

João e Maria


Era uma vez João e Maria, que não se conheciam, apesar de saber da existência um do outro por uma amiga em comum.
Eram totalmente diferentes: João, intenso, sonhador, cheio de ideias na cabeça, dinâmico, não aguentava ficar parado; Maria, livrando-se de uma depressão, vivia entre a casa e o trabalho, e, nas suas horas de folga, escondia-se em seus livros para se refugiar da realidade. Em comum, tinham apenas uma coisa, dor de amor. A de João, recente, a de Maria, antiga, de alguns anos.

Um belo dia, João e Maria se conheceram. Rolou uma química quase imediata e ficaram juntos no mesmo dia. O que a princípio seria uma aventura, tornou-se um relacionamento.
A intensidade de João contagiou Maria, que sentiu-se viva novamente. Maria voltou a acreditar no amor e jogou-se de cabeça: riram muito juntos, faziam planos para o futuro e a química, nem é preciso dizer que só fazia aumentar. Viam-se todos os dias, algumas vezes até mais de uma vez, de tanto que um fazia falta ao outro.
Passavam os finais de semana juntos, conversando, cozinhando, fazendo amor. Tudo na companhia de João era interessante para Maria. Chegaram a passar um final de semana chuvoso trancados assistindo filmes e se amando como nunca, felizes que só.

Maria nunca tinha vivido uma situação como essa, estava sentindo-se tão feliz que parecia que ia explodir. Todos à sua volta notaram a grande mudança: aquela mulher que andava apagada, voltou a brilhar. Tudo isso por causa do amor.
Um dia, surgiu uma oportunidade de João dar uma guinada em sua vida. Maria foi a primeira a apoiar e ajuda-lo de todas as formas que podia. Até que um dia deu certo e João conseguiu dar a guinada que tanto queria, dizendo para Maria que aquilo seria para o futuro deles e que assim que desse a levaria com ele.

Maria sabia, no fundo de seu coração, que não seria bem assim, que as coisas iriam mudar, pois João passaria a viver uma realidade diferente, enquanto ela permaneceria na mesma. No início até que não mudou, João ficava ansioso para encontrar Maria e lhe contar as novidades, além, é claro, de se amarem muito, literalmente.
Mas, com o passar do tempo, como Maria previra, as coisas começaram a mudar. João já não tinha tanta pressa de encontra-la, já não conversavam tanto, não se amavam tanto, ele começou a ficar impaciente e incomodado com a presença dela. Maria lhe questionou o que o incomodava tanto, mas ele não admitiu a princípio, dizendo estar tudo bem.

Um certo dia, João resolver falar para Maria que as coisas haviam mudado sim, e, que ele precisava de mais espaço pra ele, que estava sentindo-se sufocado por ela. Maria sentiu uma dor que chegou a ser física, mas, entendendo que o amor tem que ser uma via de mão dupla, retirou-se imediatamente.
João insistiu que ela estava sendo drástica, que as coisas não tinham que ser daquele jeito, e, que precisavam muito conversar. Maria aceitou e esperou uma, duas semanas que ele fizesse contato, mas, ele, simplesmente desapareceu.

João foi viver sua nova vida e Maria voltou ao refúgio de seus livros, mas, todos os dias lê as mensagens de amor que ele mandava e se pergunta o que foi feito daquele cara?
Parafraseando Dr. Dráuzio Varela, no prefácio de um de seus livros, vos digo, toda história tem três versões: o de uma parte, a da outra parte e a verdadeira. Esta, é a versão de Maria.