domingo, 22 de março de 2015

Anjo

Sabe aquela situação que tinha tudo pra dar errado e acaba dando um revertério? Pois é, foi assim que fiquei
amiga dela, há quinze anos.
Meu chefe entrou na minha sala e disse: “Andréa, você vai atender mais uma mãe, só que essa daí vem de Vitória e me parece que a família tem um poder aquisitivo bom, então pode ser que ela chegue aqui `tipo madame`, com o nariz em pé. Não abaixe a cabeça e eu não quero saber de tratamento diferente pra ela, entendeu?”. Eu, meio tonta, respondi um “sim senhor” automático.
Não deu muito tempo, entrou na minha sala uma senhora sorridente perguntando: “Oi, tudo bem, você que é a Andréa? Eu vim de fora e estou meio perdida aqui sabe...”. Eu me levantei e estendi a mão respondendo, “sim, sou eu mesma”. Ela me puxou pra um abraço e me deu dois beijinhos no rosto, falando: ”Ah que bom te conhecer pessoalmente, meu filho fala tanto de você nas cartas dele, muito prazer!”. Eu respondi “O prazer é meu Dona Graça...”, ela já foi me cortando “Dona?, eu não sou tão velha assim. É Graça!”. Foi empatia à primeira vista.
Depois do atendimento ela me perguntou se havia um lugar pra almoçar ali por perto, porque ela teria que voltar à tarde. Eu indiquei um restaurante e ela fez questão que eu fosse com ela, pra não ficar sozinha. Ficamos duas horas batendo papo como se nos conhecêssemos há uma vida. Ela me contava coisas da minha terrinha e eu contava a ela como eram as coisas aqui. E virou tradição os nossos encontros e almoços mensais, e, entre eles haviam telefonemas quase todos os dias.
Conheci a família dela quase toda. De vez em quando ela trazia alguém com ela: o marido, a filha com a neta... E todos já chegavam sabendo quem eu era. Ela me chamava de “filhota”.
Quando o filho dela foi embora, acabaram-se nossos encontros pessoais e passaram a ser virtuais e por telefone. A gente se falava todos os dias. Ela sabia como eu estava só de ouvir minha voz ou ler o que eu escrevia pela net, a danada tinha um sexto sentido de mãe comigo.
Ela queria saber tudo: se eu estava namorando, por que não estava, se eu ficasse doente sempre tinha uma
receitinha, comentava minhas fotos, adorava minhas bocas do face.
O filho dela, a gente falava que era “nosso menino”, um código criado por nós. Ela sempre me perguntava por ele quando ele estava aqui, e, depois que ele foi embora, era ela quem me dava notícias dele. Se ele ficava doente, quando ele foi papai, quando ele começou a trabalhar... nossa, como ela ficou feliz!
Não tinha explicação. Como duas pessoas que não se viam há quase sete anos mantinham um laço tão forte? Às vezes eu pensava em qual seria a opinião dela sobre alguma coisa, não dava outra estava lá uma mensagem dela perguntando se estava tudo bem comigo e ficávamos madrugada a dentro conversando.
Guardei isso comigo todos esses quinze anos, mesmo na época em que a gente se encontrava, fizemos um pacto por motivos éticos. Era uma ligação, pra quem acredita, que vinha de outras vidas. Pra mim era a única explicação cabível.
No dia 16 de março, eu estava trabalhando quando meu telefone bipou. Peguei para ver o que era e apareceu
escrito na minha linha do tempo pelo face dela “Graça faleceu dia 12 e foi sepultada dia 13”. Na mesma hora eu dei uma resposta malcriada e cheia de palavrões, pensando em qual desocupado teria invadido o face da minha amiga e feito uma brincadeira dessas.
Mas, a noite, o marido dela entrou in box e me contou que ela estava doente há muito tempo, me contou o nome da doença, e disse que no dia 08 ela não aguentou e ele teve que leva-la ao hospital, foi para a UTI, e, no dia 12 ela foi embora. Perguntei a um médico sobre a doença e ele me disse que para ela chegar ao ponto de ir para a UTI, ela deveria estar acamada há meses e com uso de oxigênio. Eu só não falava com ela há uma semana, como assim?
Fiquei imaginando minha amiga na cama, doente, me enviando mensagens engraçadas, picantes, me dando conselhos, mas, em momento algum me contou que estava doente. Por que? Será que sua generosidade foi tão grande a ponto de continuar agindo comigo como se estivesse tudo bem para que eu não sofresse? Será que sua preocupação com o outro ultrapassou a preocupação com seu próprio bem estar? Infelizmente essa resposta foi com ela, agora, meu Anjo.



"Me mostre um caminho agora
 um jeito de estar sem você
 o apego não quer ir embora
 diaxo, ele tem que querer."

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