O ano era 1999, o mês era outubro, e, num encontro informal entre servidores municipais, surgiu no papo da roda de colegas o assunto de que o Programa Bem Viver estava precisando de uma professora de dança e ginástica. Eu disse que essa era a minha área de atuação, momento em que já fui apresentada para a coordenadora do programa e marcamos um encontro para a outra semana.
No início de dezembro eu já estava trabalhando no Bem Viver, como a nova professora de dança e ginástica. Cheguei assustada porque as alunas, meninas de oito a oitenta anos, estavam acostumadas com a outra professora e as comparações eram inevitáveis. Um dia eu consegui mostrar a elas que meu estilo era outro, mas que tinham que experimentar o novo antes de criticar ou rejeitar. Deu certo, fui adotada por elas.
Depois veio a idéia: por que não inserir os meninos na dança? Ah, não ia dar certo, “dança não era coisa pra homem”. Mas com a febre do forró universitário no final dos anos noventa não foi nem um pouco difícil, e, em pouco tempo não tínhamos mais onde colocar tantos meninos que queriam aprender a dançar, foi preciso criar horário extra para atender as demandas. A princípio, eram os adolescentes da comunidade, mas depois, as alunas adultas da ginástica também reivindicaram e levaram até seus maridos para aprender. Fora as alunas da melhor idade que exigiram aprender também no horário de ginástica reservado a elas!
Então aconteceu algo interessante. Em uma conversa séria com minha “chefinha” e a nossa coordenadora geral, elas me chamaram a atenção para uma coisa muito importante: eu não estava ali somente para ensinar dança, mas também para formar cidadãos! Eu ainda não tinha acordado para isso, mas as duas me mostraram que eu tinha nas mãos um instrumento muito forte: a empatia com os alunos de todas as idades, e, poderia usar isso para multiplicar valores na comunidade.
Depois de muitas conversas com a chefinha e a nossa coordenadora geral, que é psiquiatra, enfim, consegui amadurecer e comecei a usar a minha empatia para trabalhar diversos assuntos durante as minhas aulas. O professor de artes e o de capoeira, bem mais maduros e conscientes do que eu, já estavam utilizando seus espaços para trabalhar a cidadania. Não posso deixar de lado a Pe, que tomava conta de todos nós naquela casa e nos defendia como uma leoa caso precisasse. Conheci poucas pessoas com tanta personalidade e consciência sobre cidadania como ela. Foi aí que eu entrei na dança (desculpem o trocadilho, mas não resisti).
Em pouco tempo estávamos entrosados como uma família, e, depois agregamos a estagiária e a outra professora de artes (saudades Quel e Ro), que completaram a nossa trupe. Era comum misturarmos nossos alunos para conversar sobre assuntos da comunidade, ou, algum problema que estivesse afetando alguém em especial. As mães passaram a nos procurar para pedir ajuda quando tinham problemas com seus filhos e os líderes comunitários passaram a nos ver como parceiros de verdade.
Quando havia alguma apresentação marcada era uma festa, todos ajudavam de alguma maneira: o pessoal da dança e da capoeira ensaiava, as turmas de artes (Re e Ro) cuidavam da decoração, as mães ajudavam nos consertos das roupas, nas maquiagens e nos penteados, e, todos davam alguma idéia para melhorar. Sem contar que Pe comandava tudo com mão de ferro (ai de quem saísse da linha...) e com um coração de ouro (preocupada com todo mundo), sempre ajudada pela Quel, a estagiária, sua fiel escudeira.
De vez em quando surgia a nossa coordenadora, com a chefinha sempre do lado, dizendo “Tô com vontade de inventar moda, isso aqui ta muito parado!”. Aí era aquela correria, vem projeto pra cá, idéia pra lá, palpite acolá, e, no final, surgia um novo acontecimento na comunidade, envolvendo o máximo de pessoas possíveis, é claro.
Era comum acabar o horário de expediente e ficarmos por lá, todos em volta da mesa da cozinha conversando sobre o dia, sobre o futuro, sobre abobrinhas às vezes. Para nós, não era uma obrigação, e sim um prazer passar o dia inteiro ali naquela comunidade que agora nos acolheu de coração. Nós não éramos apenas colegas de trabalho, mas sim a família Bem Viver, e, como toda família, tínhamos divergências de ponto de vista, quebrávamos o pau ali na hora da reunião e no final saía todo mundo rindo e se abraçando de novo.
Foi apenas um ano da minha vida que passei na Casa do Bem Viver (dizem que o que é bom dura pouco), com alegrias, tristezas, brigas, reconciliações, confraternizações, palestras, oficinas, cursos, festivais de férias, etc, Mas vão valer para o resto da minha vida porque foi ali que eu aprendi a ser gente de verdade. Aprendi que dar aulas é muito mais do que repassar simples conhecimentos técnicos, mas, sim, formar cidadãos conscientes de seu espaço, de sua cultura e de sua dignidade.
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